sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Recíproca da Borboleta


Pois então que eu acho mesmo que a gente nasce e passa por essa vida, seja em breve ou longa empreitada, por certos propósitos muito particularmente relevantes. Vejam-me vocês, eu que lhes falo agora, nascida de um galho de pé de carambola em época de frutos explodindo, polpudos e muito amarelos. Nasci prima dessas frutas, nasci com a mesma cor e mesma vontade de ser estrela. Mas ao invés daquela pose gloriosa de cinco quinas das carambolas enormes, assaltou-me a descoberta de que eu podia erguer-me acima da copa da grande árvore, aproximando-me ainda mais que minhas primas de nossos intuitos estelares.

A descoberta foi tão boa que minha vida agora tinha esse sentido: mancomunar-me com o vento vadio e sair voando por aí. Mas bicho que voa, não sei se lhes cabe saber, não fica bitolado em intuitos pequenos, não. E logo o vento boêmio começou a trazer notícias de terras longínquas, além de que à tardinha, nos fios das redondezas, amontoavam-se uns pardais cheios de história. Convenhamos que uma boa parte do que aqueles bichos despeitados piavam devia ser bem um bocado de invenções, eles que queriam me matar de inveja de seus vôos mais altos, mais distantes. Problema não havia. Por mais audacioso que lhes fosse o vôo, quem tinha a cor do sol nas asas, sem nem precisar chegar tão perto, era eu. Mas, desavenças à parte, começou a despontar em mim uma vontade pungente de lonjuras, e um dia acabei levando prosa mais longa com o vento e saí voando de um jeito que nem sei explicar, que não tinha contagem de tempo. Era acima o cortinado azul e abaixo aquele tapete verde, verde, verde, cinza... cinza? Estaquei dando baita susto no vento, fui descendo em espiral tremelicante, ansiosa feito o diabo.

Era uma selva de pedra, meu deus. Com umas centenas de sequóias de concreto e um formigueiro de gente, circulando em seu fluxo constante, massa homogênea de quereres pré-definidos. E é exatamente aqui que isso tudo que lhes disse vira pura conversa fiada, pois se cumpriu meu propósito particularmente relevante: mergulhei naquele mar de gente e rocei nos cabelos de um garoto, que, ao notar-me, aborreceu todas as outras pessoas, obrigadas a desviarem-se daquela pecinha subversiva atrapalhando o fluxo. Ah, mas que grande epifania aquela troca, e eu bailava no feixe invisível de seu olhar, encimado por sobrancelhas fartas, unidas, expressivas.

O que fazia ali, sozinho? De onde viera? Nada sei sobre pessoas, apenas que aquele exemplar estava muito meu, e que aqueles modos de me olhar me faziam muito dele. Garoto, diga a verdade pra mim, confessa que você na verdade é todo assim feito de jatobá, alma de madeira nobre, porque só isso explica o meu desejo doido de me virar em pupa de novo, só pra me dependurar atrás da sua orelha e lá ficar. Ficar lá protegendo feito amuleto, pra sempre.

Mas acontece que pra sempre de borboleta é curto demais, e gente tem uma mania meio irritante de encontrar conhecido na rua e o despertar com trivialidades. Além disso, acho que todo mundo sabe que destino adora dramatizar o ato, e minha poeirinha final de vida se esvaía no meio de seu “tudo bem” devolvido.

Saiba que foi de propósito que subi até confundir-me com o sol. Naquele dia eu não cabia mais em mim, nem em palma de mão alguma: eu era estrela de quinta grandeza, e você me orbitava feito planeta errante buscando calor. Adeus, adeus, meu querido garoto.